Como vivemos em um momento em que a proteção animal se manifesta ativamente, fazendo grandes campanhas de adoção, contra maus-tratos e contra o abandono nas redes sociais, sinto que se trata de uma boa oportunidade para discutir a questão da adoção consciente.
Segundo Ricardo Dias, professor na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP) – em entrevista concedida à revista Época –, “o brasileiro procura animal de estimação baseado em modismos de raça e tem baixa propensão a tentar manter o animal, diante de mudanças no estilo de vida”. Ou seja, é comum que o adotante não hesite em abandonar o cãozinho diante da primeira dificuldade encontrada. Esse dado é confirmado na mesma matéria por uma pesquisa que indica que 63% das pessoas não levariam seus cães caso se mudassem.
Embora o estudo mostre que um grande número de pessoas adota por impulso, também temos os adotantes que refletem bastante antes de adotar e, por conta disso, passam um bom tempo planejando a melhor forma de receber o novo membro da família. Esses, por sua vez, escolhem o local da casa em que ele dormirá, o banheirinho, calculam gastos fixos com alimentação e veterinário e até se programam para eventuais despesas, como a contratação de passeador, adestrador e creche.
Foi desse modo que Cintia (39), analista tributária da receita federal, programou-se para receber seu novo peludo. Há dois anos e meio morando em São Paulo, Cintia mudou-se para a capital, pois passou no concurso público da receita federal. Ela sabia que cuidar de um cãozinho sozinha seria trabalhoso, mas não imaginou que seria tanto! Samba, seu cachorrinho, entrou em sua vida por meio das redes sociais. Entre tantos peludinhos, Cintia encantou-se com a foto do vira-latinha de quatro meses, preto e com carinha de sapeca.
“A ideia inicial era adotar um cão adulto, porque eu sabia que poderia enfrentar alguns problemas que ando enfrentando com um filhote”, disse Cintia. Essa preocupação era pertinente à escolha, pois seria a primeira vez que ela cuidaria de um cachorro sozinha, sem o suporte da família que atualmente reside no Guarujá.
A mudança na rotina foi enorme, a analista tributária da receita que já acordava cedo, passou acordar ainda mais cedo para levar seu cãozinho para passear antes do trabalho.
Na hora do almoço, come em casa para encontrar o Samba e, no final da tarde, ela o leva para longos passeios. Contudo, mesmo com brinquedos disponíveis pela casa, comida de boa qualidade, passeios diários, sociabilização, Samba às vezes a surpreende; já ingeriu batata crua, destruiu os fios da TV e o apartamento começou a parecer uma casa de cachorro. Como o cãozinho tem muito energia, ela contratou um passeador para ajudar nos passeios e também começou aulas de adestramento. Além disso, ainda pensa em se mudar para uma casa que tenha mais espaço para o Samba correr e brincar.
Infelizmente, pessoas como a Cintia não são a maioria. E como vimos nos dados apresentados pela pesquisa, qualquer problema pode ser o suficiente para deixar o animalzinho para trás.
Segundo John Bradshaw, “Cada uma das raças (ou tipos) de cães se ajustou, ao longo de milhares de anos e do correspondente número de gerações, a uma tarefa a qual foi criada” (p. 17). Hoje, a maioria dos cães não precisam executar tarefas para sobreviver, pois fornecemos a eles tudo o que precisam; porém, “os cães hoje se encontram, sem nada terem feito para isso, à beira de uma crise: lutam para acompanhar o ritmo sempre crescente de mudanças na sociedade humana” (p. 17).
Exigir que um cão fique quieto o dia todo dentro de um apartamento é, no mínimo, uma ilusão, ainda mais quando trata-se de um filhote ou um cão recém adotado. Acreditar que ele compreende quando você diz de forma exaltada: “não pode comer isso”, “não pode morder aquilo”, “não pode subir aqui”, “eu que mando aqui” é algo absurdo. O cão consegue perceber que você está irritado pelo seu tom de voz e pela sua postura. Ou seja, uma bronca como o “Não”, funciona somente quando é aplicada alguns segundos após seu cãozinho fazer algo errado; mas de nada adiantará você brigar com ele horas após o ocorrido. Caso você grite, xingue ou bata em seu cachorro, ele apenas perceberá que você está muito bravo e pode associar esse momento a algo extremamente ruim. No caso de cães sensíveis, esse comportamento poderá deixá-lo traumatizado e levá-lo a desenvolver algum distúrbio de comportamento.
Quando uma criança pequena tem um comportamento inadequado, o ideal é você brigar com ela aos gritos ou tentar compreender os motivos que a levaram acometer tal atitude? Avaliar a situação para evitar que ela ocorra novamente seria uma decisão sensata. Você pode escolher ser um educador autoritário com essa criança ou não. Mas se pensarmos que o autoritarismo costuma resultar em uma relação ruim entre as partes, não seria melhor educá-la tendo como base o diálogo e o respeito?
Com cães não é diferente! Se você optou por ter um cãozinho em sua vida, dedique-se a ele! Procure atender as necessidades básicas do seu cachorro e, se ele destruir os brinquedos, faça festa, afinal, o brinquedo foi feito para essa finalidade, ou você achou que o brinquedo era mais um enfeite para a sala? Cachorros gostam de morder e brinquedos são feitos para serem mordidos, por isso é comum que ele destroce-o em minutos; mas dessa forma ele amenizará a destruição dos seus móveis e poderá até parar de roer os objetos da casa.
Mais uma vez recorro ao livro Cãosenso, de Bradshaw, que ressalta a alta exigência que temos com os nossos cães, “muitos cães mascotes vivem em ambientes urbanos circunscritos, e espera-se, ao mesmo tempo, que se comportem melhor que a média das crianças e que sejam tão confiáveis quanto os adultos. Como se essas novas obrigações não fossem suficientes, muitos cachorros ainda manifestam as adaptações que os tornaram adequados às suas funções originais – traços que agora exigimos que abandonem como se nunca tivessem existido. O collie que pastoreia as ovelhas é melhor amigo do pastor; o collie doméstico, que tenta pastorear as crianças e persegue bicicletas, é um pesadelo para o seu dono” (p. 18). Um cão que apresenta um comportamento que não agrada seus tutores pode facilmente ser deixado para trás, porque as pessoas não estão dispostas a tentar educá-lo e, assim, de uma hora para outra, o cãozinho que alegrava a família torna-se um grande problema, e a solução mais fácil é doá-lo. Como pudemos ver, o abandono ainda é bem comum, embora pareça irreal para algumas pessoas.
Márcia Colla, presidente do GPA – Grupo de Proteção do Vale do Ribeira – ressaltou o tema da adoção consciente em um texto que fez para uma campanha contra o abandono.
“Quando adotamos um animal de estimação, estabelecemos com ele um vínculo poderoso, uma relação duradoura de talvez, 15 a 20 anos. Neste tempo, assumimos uma série de responsabilidades, e a principal é a de protegê-lo até o fim. Os cães crescem, se transformam de filhotinhos fofos e inofensivos a enormes, enlouquecidos e potenciais destruidores de plantas, sapatos e jardins. As pessoas precisam entender a real responsabilidade de ter um animal e não podem tratá-los como objetos, desfazendo-se deles diante do primeiro obstáculo. Até certo momento eles são tudo na vida de alguém até que comecem a causar problemas. Até que adoeça, até que comece a latir demais, até que morda alguém, até que faça xixi no tapete, até que destrua seu sapato… A partir daí, passa a ser um problema, e como todo problema, tende a ser dispensado”.
Por isso, pense muito bem antes de colocar uma vida em sua vida!
Referências
CORONATO, M. 3 comportamentos péssimos que levam ao abandono de animais, medidos pelo Ibope. Época, 13 de Jun. 2016. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/06/3-comportamentos-pessimos-que-levam-ao-abandono-de-animais-segundo-o-ibope.html>. acesso em 03 de Jul.2016.
BRADSHAW, B. Cão senso. Rio de janeiro: Record. 2012.
Esse artigo também está presente no Jornal “O Guri” e pode ser visto no endereço: https://www.facebook.com/jornaloguri
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